sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

UMA MENTIRA POR DIA NÃO SABE O BEM QUE LHE FARIA


Todos os dias, a seguir ao jantar, a conversa, já em velocidade de cruzeiro, quebrada por silêncios confortáveis de pensamentos alinhados, ele levantava-se, que se deixasse ela estar; ele tratava do resto, ia à cozinha, dirigia-se à máquina, agarrava em chávenas e pires e colheres, tratava do resto e regressava, Servia-a amavelmente, deixa-te estar que eu trato disto, queres duas colheres de açúcar ou adoçante, trouxe os dois, hoje só uma, respondia ela, mas do verdadeiro, dieta nem tanto e ria-se e ele também e estendia-lhe uma mentira bem tirada. Era excepcional a tirar mentiras: percebia de temperaturas do momento e de jeitos e outras coisas precisas e nunca usava nada que fosse de supermercado, pacotes embalados a vácuo, nem pensar: era a sua própria mistura , que trazia de sabes lá o que eu corri para encontrar esta, é realmente muito boa, não é? E ela concordando, bebendo a mentira deliciada, acendendo um cigarro e suspirando enquanto estendia as pernas, uma maravilha, sabe lindamente, querido! E assim se ficavam, numa serenidade feita desse perfume, que ela saboreava no momento melhor do dia, contava às amigas, é o melhor momento do meu dia, quando estou ali absolutamente relaxada e sossegada, a beber aquilo, ele pode não saber cozinhar, mas eu desculpo-o; é realmente especial aquela hora do nosso dia.
Ele ia variando, para ela não se fartar do mesmo sabor, sabes lá o que eu corri para encontrar esta e ela, grata, sorridente, feliz, és mesmo bom para mim, tenho tanta sorte, ele satisfeito com aqule resultado, o trabalho que deve compensava largamente, e todos os dias repetia os mesmos gestos, uma mentira sempre bem tirada, não era preciso mais nada.
Às vezes ela dizia, hoje se calhar não, preciso de me deitar cedo, vou só fumar um cigarro e ele, sempre solícito, espera que tenha ali outra coisa e ia à cozinha, tirava chávenas e pires e colheres, fervia àgua e misturava mentiras em folhas que depois coava e, quando estendia a tisana, dizia, vais ver que com esta ainda dormes melhor e ela, agradecida, contente, que simpatia, que charme, que sorte tenho, àmanhã quando contar às minhas amigas vão ficar verdes de inveja, quem lhes dera esta felicidade todos os dias, realmente não sei porque complicam tanto, basta uma chávena, e é tudo tão simples.
Não sabe bem quando começou a ter insónias. Acordava de noite em pânico, estendia os braços, às vezes encontrava-o, outras não, claro que não está cá hoje, que parva, ele disse-me, ainda estou meia a dormir e dava voltas e voltas na cama sem o encontrar e, claro, as insónias eram disso, mas dormia mal, cada vez pior e sentia-se assim mais ou menos pouco em forma durante o dia, é de não dormir, não sei o que tenho; vai ao médico, aconselhavam as amigas, que te andas a definhar, essas insónias estranhas, eu se fosse a ti ia e ela lá se convenceu. Minha senhora, disse o doutor, depois de exames e análises, não tem nada, mas deveria evitar beber coisas que lhe tirem o sono antes de dormir, nem uma tisana? Nem jma tisana, minha senhora, às vezes essas tisanas calmantes sabe-se lá o que têm dentro, beba àgua que limpa o sistema, muita àgua da torneira, beba àgua minha senhora e durma que o seu mal é sono.
Nessa noit, depois do jantar, ele levantou-se e disse-lhe deixa-te estar que eu trato de tudo e ela responde, amor, só um copo de àgua da torneira, deixa-te estar tu, vou eu buscá-lo, levantou-se e nunca chegou a ver o olhar de total e absoluto pânico dele.
Texto de Catarina Campos - Economista

1 comentário:

Anónimo disse...

A mentira tem pernas curtas, sempe ouvi dizer. Está muito boa. Obrigado Leonor, Bjs

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