quinta-feira, 2 de março de 2006

AS PORTAS QUE NINGUÉM VÊ


O texto é um pouco extenso mas vale a pena ler até ao fim pois só assim a mensagem contida na narração simples de Susana Tamaro será entendida.

"As coisas tinham uma linguagem, e também as pessoas tinham uma linguagem. Entre uma e outra, Marta preferia a linguagem das coisas.

As árvores, os lençóis, as motorizadas ou as latas contavam sempre coisas simpáticas, ao passo que as pessoas quase só falavam para dizer coisas desagradáveis. A linguagem dos grandes - à excepção do avô - era uma linguagem de lixo. Para lá se atiravam as coisas inúteis, as coisas desemparceiradas, as coisas sem graça que não era possível pôr noutro lugar.

Quando fechava os olhos e tentava imaginá-la, Marta via essa linguagem como uma fita, uma fita que se desenrolava ao longo de quilómetros e de anos, uma fita de lixo em que vivia envolta desde sempre. Com o passar do tempo, a fiata foi ficando pesada como um tapete de cerimónia, sufocante como as roscas de uma boa constrictor. Nessa fita estavam gravadas todas as frases que só podem ser ditas entre as paredes de casa, as frases que se escapam dos lábios, as frases de raiva, as frases que dão pontapés, as frases de todos os dias.

Marta não se lembrava de um só dia sem aquele ruído de fundo. Quando era mais pequena, os berros despertavam-na em sobressalto e, de susto, desatava a chorar. .............



.......... Um pouco mais crescida, fechada no seu quarto e escondida debaixo da cama à espera que a tempestade passasse, tinha começado a combinar as palavras com as cores. "És um falido." Amarelo. "Já não te suporto." Laranja. "Volto para casa da minha mãe." Branco. "És um bêbado." Vermelho. " E tu não serves para nada." Verde. "Odeio-te." Negro. "Aquele parva da tua filha." Azul. "Também é tua." Cinzento. "Ainda se está para ver." Azul.

Havia dias mais alaranjados e outros mais amarelos. Dias mais vermelhos, dias mais negros. Com o tempo, além da cor, tinha passado também a dar uma forma às palavras. Havia palavras-térmitas, palavras-aranhas, palavras escorpiões. Estendida no soalho, via-as correr na sua direcção.

As palavras-térmitas penetravam por baixo das unhas, corriam ao longo das veias, atingam o coração e atiravam-se a ele com as patinhas e as mandíbulas afiadas.
Quanto às palavras-aranhas, viviam entre o estômago e os pulmões. Aí, aprisionavam os órgãos na sua teia, apertavam-nos e faziam-nos dançar, cortando-lhe o folgo.

As palavras-escorpiões eram palavras ligadas a uma acção, como "prato partido", "pontapé numa cadeira" ou "bofetada". Palavras-aguilhão acompanhadas de dor.

Na parede em frente da cama, Marta havia pendurado uma velha folha de calendário. Era uma paisagem de montanhas e neve, ao fundo da qual havia uma cabana de madeira como as dos contos de fadas. Tinha sido o avô a dar-lhe aquela fotografia.


- Quando não souberes para onde ir- dissera-lhe -, refugia-te na paisagem. Caminha pela neve e respira. Depois, entra na cabana e fecha-te lá dentro.

As palacras do avô eram muito diferentes das palavras da fita-de-lixo. Não eram palavras-setas, palavras-pedrada-na-cara. Em vez de fecharem as portas, abriam-nas. Foi ele que lho declarou um dia, quando estavam sentados num banco do parque.

- Sabes por que é que as pessoas se aborrecem? - perguntou, à queima-roupa.

- Não.

- Porque não vêem as portas.

- Quais portas?

- As que estão escondidas por aí.

- Por aí, onde?

- No ar, à nossa volta, nas casas, nas paisagens, nas estações de autocarros, na barriga das pessoas. Se souberes abrir as portas, nunca mais estarás triste.

Compreendera então que as palavras do avô eram palavras-chave. Iam sempre à frente, explorando o espaço e transformando uma coisa noutra.

Palavras-chave e palavras-manta, palavras tépidas para adormecermos sossegados debaixo delas, como anõezinhos mimados da Branca de Neve.".

3 comentários:

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

Em Alvito acontece...

Já somos 44...

Esperamos muitos mais...


Bom fim de semana

António disse...

Penso que fizeste uma transcrição do livro (representado na imagem) de Susana Tamaro.
É um naco de prosa simples e bonito.
Cheio de conteúdo, também.
Não são, seguramente, palavras-lixo.

Obrigado pela tua visita.

Beijinhos

Heavenlight disse...

Bonito texto, triste mas com uma grande mensagem. Estão por aí escondidas as portas que podem mudar a vida. Muitas vezes encontramo-las e não lhes damos o devido valor. Muitas vezes estamos tãoi atarefados que nem reparamos nelas. Outras vezes, porém, permitimo-nos atravessá-las e então apreendemos o Mundo de outra forma, e tornamo-nos um pouco melhores.
Uma coisa é certa:
Elas estão sempre lá.

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