
O mundo imaginário da nossa infância é povoado pelas coisas mais belas e fantásticas que hoje recordamos com um sorriso de saudade.
Quantas vezes dizemos: "quando eu era miúda...". É verdade, quando nós éramos miúdas sabiamos brincar ao "faz-de-conta" e a nossa imaginação não tinha limites. Eramos tudo o que queriamos ser e a nossa tendência era de imitar os adultos. Que pressa tínhamos de crescer!
Brincávamos às casinhas, às mães e filhas, aos maridos e "maridas", aos homens do autocarro, aos merceeiros, aos reis e raínhas, às professoras e eu sei lá que mais! Mas num cantinho do nosso "sótão" das recordações encontramos sempre algo de especial que nos marcou e que nunca esquecemos: uma foto, um objecto, um simples brinquedo arrumado há muito.
No meu "sótão" está a Milucha, uma singela boneca de pano. Estou a vê-la... A Milucha era de pano e, tanto quanto me lembro, tinha um chapéu preto, olhos azuis muito grandes e trancinhas amarelas feitas de linha. Foi da minha irmã e passou para mim, o que quer dizer que já fazia parte da família.
Tinha outras bonecas melhores e mais bonitas mas a minha preferida era aquela, vá lá saber-se porquê. As crianças são imprevisíveis... Minha amiga inseparável suportou sempre com o mesmo sorriso no seu rosto de trapo todas as minhas oscilações de humor, ora sendo alvo das maiores demonstrações de ternura, ora sendo agredida sem dó nem piedade.É verdade, o que a pobre sofreu quando me dava a fúria e a atirava contra a parede, chamando-lhe nomes...
"Por que fazes isso, Nini? - perguntava a minha irmã. "Porque sim!" E pronto, não havia mais explicações! Porque sim ou porque não é a lógica infantil e está tudo dito!
Mas enfim, tirando essas coisas (criança também tem "crises"...) ela era a minha grande companheira e confidente. Sim porque eu falava muito com ela, enquanto lhe compunha as tranças e as enfeitava com laços. E, até para ficar com um ar mais saudável, acrescentava alguma cor às suas bochechas com lápis vermelho...
Depois cresci e a Milucha começou aos poucos a saír da minha vida, como é natural. No entanto, ainda hoje, tantos anos passados, recordo com carinho aquela boneca desengonçada e um pouco suja, companheira das minhas brincadeiras.
Todas as bonecas de trapo com tranças para mim são Miluchas, sempre Miluchas. Não lhes fica bem outro nome.
Aquela já não existe. Dei-a a uma garota que a cobiçou. Parece quase ingratidão...
Querida Milucha, quero que saibas, lá no mundo dos trapos do tempo, onde talvez ainda exista alguma ínfima partícula da tua alma de boneca, que te amei e amo porque foste a grande amiga e companheira do tempo em que eu ainda brincava ao "faz-de-conta".